CONSCIÊNCIA XAMÂNICA E MIRAÇÃO
Alex Polari
Porém o mais importante que queremos destacar
dentro do xamanismo é a vivência, a mobilidade de atuação do Eu dentro do
transe. O Eu se torna o veículo divino, a carruagem dos cabalistas (Merkabath)
que alça vôo em busca dos palácios celestes. Mas ele não se limita em
contemplar seus átrios e fachadas reluzentes. Ele caminha por seus labirintos,
túneis secretos, ele procura conhecer o que se passa em cada um de seus
aposentos e câmaras. Esse é o roteiro da "miração", um estado de
consciência místico-xamânico, obtido com a ingestão ritual do Santo Daime, que
gostaríamos de nos deter mais minuciosamente.
A "miração" é um termo que foi cunhado na
tradição do Santo Daime pelo Mestre Irineu para designar o estado visionário
que a bebida produz. O verbo "mirar" corresponde a olhar, contemplar.
Dele deriva-se o substantivo "mirante", que é um local alto e isolado
onde se pode descortinar uma vasta paisagem. A palavra "miração" une
contemplação mais ação (mira+ação), o que expressa de maneira clara que o termo
foi cunhado por pessoas que eram plenamente conscientes da viagem do Eu no
interior da experiência visionária, característica do êxtase xamânico. E que é
simbolizado pela viagem da águia voando em direção ao sol.
Sem dúvida existe uma grande diferença entre uma
iniciação quietista - que prepara o neófito através do silêncio e da meditação
- e a iniciação xamânica que o convida para ser protagonista totalmente
responsável pelo seu desdobramento astral e vôo espiritual. Nele, somos
convidados a participar de um filme em que as cenas que se desenrolam na tela,
dependem, em última instância, do que está ocorrendo no interior da nossa
consciência. Em outras palavras: só conseguiremos salvar a donzela do
"filme astral" das garras do vilão, se a nossa disposição para tanto
for tão verdadeira como a nossa capacidade de realizá-la. Temos que estar
concentrados no nosso objetivo, mobilizando desde o nosso interior a coragem e
a sabedoria necessária para atravessar as diversas provas do percurso iniciático.
Caso contrário, a "narrativa visionária" sai do nosso controle
podendo acontecer um desfecho negativo e uma interrupção do vôo do Eu rumo ao
êxtase.
Estamos querendo dizer que dentro da miração o
estado de ação e contemplação são como as faces complementares de uma mesma
moeda. A mente, antes de dar partida ao fluxo de imagem da miração, experimenta
várias outras fases de preparação. Tem que distinguir a genuína experiência
visionária da imaginação pura e simples, dos jogos mentais de projeção e visualização.
As imagens visionárias, os eventos visionários que envolvem o nosso Eu dentro
da "miração" são de ordem psico-noética, isso é, ocorrências numa
ordem de realidade contígua ao mundo espiritual. O que nos permite afirmar que
a "miração" ativa os nossos corpos sutis e os libera par agir dentro
do cenário feérico e numinoso da realidade xamânica.
Esse nível de consciência atingido pela
"miração" vem quase sempre acompanhado de uma voz interior que guia,
acompanha ou dirige o processo. esta é, ao meu ver, a faceta mais incomum e
maravilhosa da "miração" do Daime. Durante o seu transcurso nossa
consciência participa dos fenômenos psíquicos, noéticos e espirituais, através
dos nossos corpos sutis. Através deles, o nosso Eu comparece nos momentos decisivos
e brevíssimos onde se decide sobre o nosso destino em meio às vagas
probabilidades do mar de indeterminações quânticas.
Dessa forma, imprimimos movimento ao que é imutável
e eterno, manifestamos vida e fecundamos a matéria por seu intermédio. Ajudamos
a tecer a trama do próprio destino, a complexa textura dos eventos geradores da
realidade e da vida. Isso significa que, no êxtase da "miração",
estamos travando um diálogo com Deus, estamos trabalhando com Ele, estamos
sendo convocados para essa grande responsabilidade de sermos co-criadores do
universo. E sem dúvida, só um destino com tal nobreza justifica o plano da
criação divina, as provas da evolução, o porquê da queda luciférica, a entrada
em cena do mal e a nossa tarefa de convertê-lo e reunificá-lo com a verdade até
o final dos tempos. Receber essa missão é o cerne da Revelação em todos os
tempos. Enquanto que o cerne da iniciação é adquirir a força de vontade
suficiente para executar tudo o que foi revelado na miração.
Anteriormente nos referimos que a falta de mérito e
de coragem durante o vôo xamãnico poderia desestabilizar a "miração",
ou o que é pior, fazer com que o fio narrativo da experiência visionária tenda
para um desfecho desfavorável. Nesses reinos espirituais de deslumbrante beleza,
parece que impera uma terrível justiça. O homem não está programado para ser
perfeito. Ele tem que biológica, psicológica, social, moral e espiritualmente
falando, escolher ser perfeito. Isso se faz através da faca de dois gumes do
seu livre arbítrio. Graças a ele, o homem por um lado supera em estatura os
deuses, devas e querubins, enquanto que por outro, se torna presa fácil da
ambivalência de sua frágil inconsistência humana.
O Budismo Tibetano se refere a esta eclosão súbita
da ruptura do ego frente ao sublime, como sendo o momento em que, dentro da
meditação, o meditador, sob a inspiração da Dakini (aspecto feminino do Buda),
enfrenta as entidades terrificantes que se postam diante do Nirvana. Quando o
ego consegue se apossar do Eu, a consciência já expandida se retrai novamente.
Nesses momentos, as visões podem se tornar negativas, até mesmo terrificantes e
isso está associado aos efeitos purgativos e miméticos da bebida enteógena
indutora da "miração".
Reconhecido porém o impostor, é a hora da
consciência, à semelhança da esfinge, lançar o seu desafio: Decifra-me ou te
devoro! Somos cobrados a apresentar um desempenho compatível com a nossa
presunção de alcançar a imortalidade. Se nessa hora não tivermos verdade para
apresentar, o monstro elemental por nós mesmo criado, nos come. O Poder nos
cobra sempre a nossa transformação para podermos continuar no caminho. Pois sem
a verdade no ser, o caminho se torna perigoso para o impostor.
É o que Sebastião Mota, um dos principais
"padrinhos" do Daime chama da necessidade de "ser em vez de
parecer". Ser verdadeiro é pois a ciência para entramos totalmente seguros
nos estados elevados de consciência e deles conseguirmos sair, trazendo no
retorno novas aquisições para continuarmos a Busca. Nos níveis sutis, a verdade
atrai a verdade. O ser manifestado enquanto verdade é a matéria prima da
criação. Quanto mais estamos na verdade, mais se apresenta a nós na miração
aquilo que precisamos ser. E Deus nos usa como peças do seu quebra-cabeças
divino, nos inspira amor e nos torna cúmplices da sua obra. A verdade do ser é
exata, nela nada falta nem sobra. Não há lugar para condicionamentos mentais,
hábitos viciosos disfarçados de caráter, máscaras ou papéis sociais. Se o nosso
coração nos acusa, é porque não temos verdade. E sempre que esta falta de
verdade interromper a nossa "miração", desestabilizando-a, devemos
aproveitar o seu momento sagrado para pedir ao Poder que nos conceda a chance
de nossa transformação.
O sofrimento e o desconforto, que às vezes essa
disciplina nos acarreta, depois sempre é sentida como benéfica. Eis a autêntica
terapia xamânica, uma terapia de conversão à verdade, onde nos afastamos das
ilusões e das samsaras nos tornando cada vez mais conscientes do nobre script
que Deus nos reservou.
Tentamos aqui, violando o item da inefabilidade da
experiência mística, expressar de alguma maneira com as palavras, essa sensação
extraordinária que é trabalharmos projetados em nossos corpos sutis nas
oficinas seráficas da criação divina. Isso ocorre, como já vimos, mediante à
atuação do Eu Superior no interior das imagens visionárias, como se a
"miração" fosse um jogo interativo de "realidade virtual
espiritual". Para que esse processo traga benefícios que possam ser
incorporados ao ser, exige-se deste uma postura passiva-receptiva e um padrão
mental positivo e elevado. Dessa forma é que a barquinha da consciência pode
navegar nas ondas do mar sagrado, que é a Mente, e se manter com as velas
enfunadas em meio ao mau tempo e aos maus pensamentos.
Para finalizar esse ponto, gostaríamos de nos
referir sucintamente a duas questões conexas à nossa abordagem de estado de
consciência xamânico da "miração". Trata-se do carma e da
mediunidade, aspectos ligados ao tema da cura xamânica. Num certo sentido, a
cura espiritual já é a própria imersão do Eu nesses estados elevados de
consciência, fazendo com que ele amplie a sua visão interna sobre as causas dos
desequilíbrios que geram as doenças. Nessas vivências visionárias do Eu no
interior da "miração" também ocorre dele se lembrar de fatos
relativos às suas vidas passadas, facilitando a compreensão de padrões cármicos
que precisam ser interrompidos nessa encarnação.
Já o fenômeno da mediunidade, não se resume apenas
ao transe e à incorporação. Num outro sentido, ele trata também da miríades de
pequenos "eus" que orbitam em torno do nosso Eu central. E que à
primeira distração nossa, entram por dentro da casa e assumem o lugar do dono.
Em alguns estágios da "miração" podemos perceber esses
"eus" como seres. Podemos perceber que cada pensamento que flui na
nossa mente é um ser e com isso, aprendemos a melhor ajustar o nosso dial
mediúnico para captar apenas a freqüência dos seres que nos interessam. Mas nem
sempre podemos escolher o que chega à nossa mente. Portanto esse canal
mediúnico também nos ajuda a auto-doutrinar os maus pensamentos e afastar as
más influências psíquicas e espirituais que podem se tornar nossos futuros
obsessores.
Tentamos expressar um pouco o nosso entendimento da
"miração" compreendido como um estado de percepção mística que guarda
várias semelhanças com aquilo que denominamos consciência cósmica. Escolhemos
um aspecto da "miração", a saber o da relação interativa do Eu com as
visões, característica da tradição xamânica. Isso porque, a "miração"
é ao mesmo tempo uma realidade visionária em movimento e um estado de
contemplação extático. À maneira do samadi, comporta vários estágios, graus e
possibilidades de realização. Apresenta planos e panoramas imensos e às vezes
passa tempo trabalhando apenas alguns fotogramas. Sua meta suprema é a
realização do Eu superior do homem. Apesar da ajuda inestimável das plantas
sagradas para a sua consecução, o trabalho espiritual da "miração"
nunca termina. Continua no dia-a-dia através do esforço de se manter coerente
com os seus ensinos.
Algumas vezes, através da "miração",
temos uma percepção clara da realidade espiritual da vida além do corpo.
Penetramos assim no mistério que a nossa ignorância chama de morte, mas que não
passa de uma transição para um outro estado de consciência. Voltar dessa
experiência da "morte" com conhecimento do que isso seja, significa
ter renascido e recebido o mais alto grau de iniciação, independente do credo
que cada um professe.
Por isso consagramos o ser divino presente nessas
plantas amigas e professoras do homem e a "miração" que ela nos
fornece. Mesmo que o seu uso responsável seja sempre benéfico, é porém dentro
de um contexto ritual e religioso, que sentimos uma maior segurança para a
utilização profilática e terapêutica dos enteógenos “
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